Autor: NerunSistema: d20

A desvalorização do dinheiro em D&D

Quando Dungeons & Dragons introduziu um sistema monetário para seus mundos de fantasia medieval baseado em moedas de ouro, prata e cobre, alguns dizem que o realismo foi sacrificado no altar da simplicidade. D&D definiu o valor das moedas de ouro, prata e cobre na razão fixa de 1 po : 10 pp : 100 pc (1 pp : 10 pc), e o peso de cada moeda em 10 gramas (D&D Livro do Jogador, pág. 94 na 3.5 e pág. 212 na 4a.ed.). Nem todos os jogadores se incomodam é claro, a maioria prefere a simplicidade.

A explicação para essa escolha apareceu apenas no AD&D 1st edition, Dungeon Master’s Guide, pág. 90, nas palavras de Gary Gygax:

Não há dúvidas de que os preços e custos do jogo são baseados em uma economia inflacionária, onde um súbito afluxo de ouro e prata elevou o preço de todos os bens além do seu valor normal. A razão por trás disso é simples. Uma campanha certamente trará um fluxo constante de riqueza para a área base, à medida em que aventureiros retornem de suas bem sucedidas incursões em masmorras ou em campo aberto. Por exemplo, se a economia de uma região é do tipo que reflete com mais precisão a da Inglaterra medieval, então as moedas de cobre e prata são usuais e as de ouro são raras¹. Nesse caso, um tal influxo de dinheiro novo, ainda que apenas em prata e cobre, provocaria uma espiral inflacionária². Isso obrigaria o Mestre a ajustar os preços dos bens de acordo com a inflação, e a aumentar os tesouros para manter o ritmo³.

Notas:
¹ Durante toda a Idade Média até o renascimento, as moedas de ouro eram raríssimas, o normal eram as moedas de prata e cobre, às vezes bronze (liga de cobre e estanho) ou bolhão (liga de prata e cobre). As moedas de ouro eram usadas apenas como moedas de conta, isto é, nos livros de contabilidade.
² Quando o número de bens disponíveis não cresce, mas o número de moedas aumenta enormemente, as pessoas consomem mais, compram mais, fazendo os bens se esgotarem rapidamente, o que faz os preços se elevarem. Daí desvalorizando a moeda, pois o que tem em excesso vale pouco, e o que tem em falta vale muito se a demanda é alta (lei da oferta e da demanda).
³ Se os PCs ganham dinheiro, causam inflação, logo o dinheiro deles não vale tanto, e os tesouros das aventuras também não, então os tesouros teriam que ser cada vez maiores para manter o ritmo de enriquecimento dos PCs. Seria um círculo vicioso sem fim.

Bom, está bem explicado. Os preços tem que ser fixos, e a proporção do valor dos metais também, tudo por simplicidade. Mas há realismo? Sim, parece que não, mas digo que há sim.

Moedas na Idade Média

Durante toda a Alta Idade Média (500-1000 d.C.), as cunhagens de moedas do Império Carolíngeo (768-888 d.C.), do Império Bizantino (o Império Romano do Oriente, 395-1453 d.C.), e do Califado Omíada (661-750 d.C.), na mesma época do século VIII, possuíam uma razão de valor muito similar entre suas moedas de ouro, prata e cobre. Além disso, apenas Bizâncio e Damasco cunhavam moedas de ouro com frequência. As cunhagens em ouro do Império Carolíngeo e dos reinos europeus subsequentes eram raríssimas, quase inexistentes!

A reforma monetária de Carlos Magno adotou o denarius de prata e o solidus de ouro, moedas do antigo Império Romano, e que virou padrão em toda a Europa medieval. Em Portugal cunhou-se moedas chamadas de dinheiro (aportuguesamento da palavra latina denarius). Lembrando que o Reino de Portugal nasce somente em 1139, antes disso era tudo Espanha. Bizâncio adotou o miliaresion (pl. miliaresia) de prata e o nomisma de ouro (chamado “besante” na europa). Os Omíadas adotaram o já em uso, porém reformado, Dinar de ouro, Dirham de prata e Fuls de cobre.

A partir de agora vou utilizar os símbolos químicos como abreviação, isto é, Au é ouro, Ag é prata, Cu é cobre. A razão indica a relação entre uma mesma quantidade de metal (1 grama), e o “~” indica valor aproximado conforme calculado para o século VIII nesses três impérios:

Carolíngeo:
1 Au ~ 5,6 Ag
* Não cunharam moedas de cobre, em vez disso cortavam a moeda de prata ao meio ou em 4 partes.

Bizantino:
1 Au ~ 6,0 Ag ~ 514,3 Cu

1 Ag ~ 85,3 Cu

Omíada:
1 Au ~ 5,7 Ag ~ 451,8 Cu

1 Ag ~ 79,2 Cu

Em D&D, lembrando, é:
1 Au = 10 Ag = 100 Cu
1 Ag = 10 Cu

Como se vê, o ouro valia muito, pois era bastante raro como metal. Até mesmo a prata, quando comparada com o cobre, valia muito (1:85)! Havia então moedas de cobre, bronze ou bolhão, com diferentes pesos e valores conforme o reino, que cobriam o uso cotidiano. Predominava apenas o denarius como moeda de prata. Quando era necessário um valor menor, cortava-se a moeda ao meio ou em 4 partes! A Alta Idade Média não sentiu necessidade de qualquer outro tipo de moeda de prata. Outros tipos de moeda de prata só serão cunhadas a partir de 1172 quando, devido ao Renascimento Comercial, Gênova cunha o grossus de prata, que valia 4 denarius (4d).

Para saber mais sobre as moedas desse período, leia este artigo na Fantastipédia.

Uma outra fonte histórica (Deutsche Bundesbank, Gold coins of the middle-ages, 1983) relata que a partir da Baixa Idade Média, mais especificamente após a cunhagem do florin de ouro por Florença (Itália, 1252), a razão era de: 1 Au ~ 10,5 Ag. A mesma fonte diz que no começo do século XIV (1.300+) a razão começou a aumentar: 1 Au ~ 14 Ag. Em 1320 chegou a 1 Au ~ 20 Ag. Em 1340 voltou a 1 Au ~ 11/12 Ag. E na Alemanha em 1386 retornou a 1 Au ~ 10,76 Ag.

Eu fiz outras pesquisas e descobri que na Inglaterra em 1351 a razão era de 1 Au ~ 16,2 Ag. Usei como referência de massa e valores as moedas noble de ouro (80d, 7,78g) e o groat de prata (4d, 6,3g). Havia outras moedas no período, consulte a Wikipédia em inglês. As primeiras moedas de cobre inglesas só vieram com o Rei James I em 1672. Antes disso, mesmo as farthings (equivalentes aos quadrans, isto é, 1/4 de denarius carolíngeo) eram de prata.

Quer precisão histórica na sua mesa de jogo? Então escolha o período e o local e pesquise muito, porque a razão de valor entre outro e prata variou um bocado.

Moedas no Brasil Colônia

As moedas cunhadas em Portugal para circular nas colônias e, depois, as moedas cunhadas nas próprias colônias, mantiveram uma razão relativamente estável de valor entre os três metais aqui estudados durante quase todo o período colonial:
1 Au ~ 12,5 Ag ~ 160 Cu
1 Ag ~ 12,8 Cu

Eu sou numismata (colecionador de moedas), então essa razão eu calculei usando o Livro das Moedas do Brasil (Amato / Neves / Russo) e As Moedas do Brasil (Caffarelli) que apresentam o peso de cada moeda de ouro, prata e cobre. Converti o preço em réis (moeda da época) por grama do metal, e fiz uma razão de um para o outro.

Mas isso é muito próximo de D&D não? Arredondando, 1:13 é quase 1:10, com pouca diferença. Explica-se: o afluxo de riquezas para a Europa nos primeiros anos da expansão ultramarina, notadamente o ouro do Brasil e da África, e a prata da América Espanhola, aumentou a oferta desses metais no continente, desvalorizando-os frente ao cobre. Era 1:85 na Alta Idade Média, e caiu pra 1:10 na Idade Moderna, uma desvalorização de quase 90%.

Metais Hoje

Hoje, após a industrialização não houve descobertas de grandes jazidas de ouro, mas a população cresceu exponencialmente, consequentemente o ouro subiu a patamares de valor muito superiores aos da Idade Média. O ouro é usado na indústria mas é, basicamente, usado como reserva bancária, daí seu alto valor (60% do ouro no mundo está nos cofres dos bancos privados e dos governos). A produção mundial de ouro tem caído (esgotamento das minas), o que contribui para a alta do preço. Também contribui o fato de que os investidores migram seu capital para o outro durante crises financeiras e instabilidades econômicas.

Atualmente a prata é apenas um subproduto da extração de outros minerais, como o zinco e o chumbo. Isto porque as minas de prata estão esgotadas, o que há hoje são minérios de outros metais que contém prata, daí ser subproduto. Por isso sua oferta é pequena em relação à demanda. A prata tem hoje o status de insumo industrial e não de metal precioso, sendo usada na eletrônica, radiologia etc.

De todos os três, apenas a produção de cobre foi a que encontrou a maior expansão, desvalorizando incrivelmente frente à prata e ao ouro. Ainda sim, a demanda é maior que a oferta, e seu valor tende a subir (valorizou 10% de 2012 à 2019). Pois o cobre tem um papel fundamental nas indústrias do transporte, na eletrônica, na construção, na agricultura, na energia, na saúde e nas novas tecnologias.

A relação entre o ouro e a prata para o cobre é dezenas de vezes maior que a do período colonial. Enquanto a prata e o ouro são negociados à US$/onça, o cobre é negociado à US$/tonelada métrica. Os valores a seguir foram calculados em 10/Dez/2020:
1 Au ~ 73,3 Ag ~ 7571,9 Cu
1 Ag ~ 103,3 Cu

Conclusão

Meus amigos, D&D está certo! Isso porque sua economia é similar à economia dos grandes impérios coloniais.

Suas proporções de valor lembram muito a Baixa Idade Média, só erram no cobre. Porém, os mundos de fantasia medieval possuem um grande afluxo de riquezas devido à atividade dos aventureiros que regressam repletos de tesouros, fazendo desvalorizar o ouro e a prata. Por outro lado, é uma economia estável, pois os monstros e vilões são ativos! Eles saqueiam vilas, cidades e povoados e formam tesouros a serem roubados novamente.

Os mundos de fantasia são antiquíssimos, foram construídas civilizações sobre civilizações. Cada uma delas explorou ouro, prata e cobre de várias minas, cunhou moedas, vieram monstros, juntaram tesouros, vieram aventureiros (antes da época da sua campanha), causaram inflação etc. Todo esse ouro e prata ficou no mundo.

Mas agora, o “período inflacionário” já passou, pois a atividade das minas, dos monstros e dos aventureiros alcançou um equilíbrio, e os preços estão estáveis e fixos conforme as tabelas do Livro do Jogador. E o valor do ouro e da prata continua baixo quando comparado ao cobre em um mundo medieval histórico típico.

Ocorre nos mundo de fantasia o efeito decorrente dos “impérios coloniais” e do “metalismo” dos séculos 15 ao 19 da nossa Terra.

O que não ocorre é terem outras moedas do mesmo tipo de metal, como várias moedas de cobre, cada uma com um valor para facilitar o troco e tal. Esse é o único realismo que falta. Mas isso não é problema em jogos de RPG.

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Daniel "Nerun" Rodrigues

Nerd, numismata, colecionador de quadrinhos, fã de star wars e RPGista super fã de GURPS e sistemas indies.

4 comentários sobre “A desvalorização do dinheiro em D&D

  • Achei o post por acaso, e acabou sendo de grande ajuda, amigo!
    Vai ajudar muito na minha mesa 🙂

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  • Gostei muito do texto, muito interessante.

    Atualmente, estou usando um sistema de moedas de base 1000 (no caso: uma peça de ouro vale mil peças de prata, e uma peça de prata vale 1000 peças de cobre)

    Peças de ouro seriam bem raras, e usadas mais pelos nobres ou em relações entre reinos ou impérios. Peças de prata e cobre, por outro lado, são usadas com maior frequência pelos cidadãos comuns nas trocas do dia a dia.

    A prática do escambo ainda é bastante comum em sociedades mais primitivas ou em regiões de fronteira

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  • Parabéns pelo artigo, a proporção ela até condiz com o realismo em uma certa época da vida real, mas o que me incomoda é a falta de realismo nos preços. A economia em D&D é baseada em peças de ouro, quando deveria ser na prata e cobre, restando o ouro para ser uma poupança, valores grandes em poucas peças. Você encontra coisas simples custando peças de ouro e coisas mais caras somente o dobro da mencionada. Um alforje custa 4 po enquanto uma carroça 15 po, ou a carroça é muito barata, ou o alforje caro, e óbvio que o alforje deveria ser precificado em prata. Muita gente não liga, mas ficaria mais legal preços condizentes com a realidade e nos loots, o ouro ser usado como reserva de valor e não como uma moeda corriqueira.

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